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19/05/21Esports

“Impossível” - Gaabxx, Sharks

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“Olha, falar a verdade pra você, Eve. Eu nunca tinha chorado em uma conquista. Mas no sábado, contra a FURIA, eu chorei. Eu tava nervoso, tremendo… Foi um dos momentos mais felizes da minha carreira, com certeza. Nunca vou esquecer disso.”

Naquela terça-feira, 11 de maio, completavam-se 3 dias desde que a Sharks conquistara sua vaga no VALORANT Masters Reykjavík, na Islândia. A vitória coroava a explosiva trajetória do “Treinão do Fra”, que desdenhou do favoritismo de seus rivais desde o início e abriu caminho rumo ao topo do mundo.

Gaabx tinha a voz firme ao falar da jornada até ali.

“Eu sou um cara bem religioso. No dia do jogo, eu orei muito. Acordei cedo, desci na escolinha que tem na minha rua, que tem mato, pisei na grama. Falei: ‘Deus, por favor, o Senhor sabe que é meu sonho, eu sempre batalhei para isso.’ Voltei pra casa, orei de novo, ajoelhei na cama, pedi. Na hora do jogo, na escolha dos agentes, pedi de novo, agradeci”, relembra, olhando para o céu.

“Perdi o primeiro mapa. Ai, meu Deus, será que não é pra ser? Por favor… Se for pra ser, faça ser. Ganhamos o segundo mapa. Aí no terceiro, 8 a 0 [para a FURIA]. Não acredito, tão perto e a gente vai perder. Aí ali no 8 a 0, vamo, vamo que dá. Igual eu sempre falo: eu consegui a vitória, nosso time jogou muito bem, mas tem um pitaquinho do Senhor Jesus ali. É impossível você virar um jogo de 8 a 0 do jeito que foi.”

“Claro que é possível! Vocês fizeram”, retruco, com um sorriso.

Ele sorri de volta. “Sim, é possível, mas Deus tem um pouco ali. Alguma coisa ele mexe”, garante.

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Essa foi a quarta vez que Gabriel Carli conseguiu uma vaga para jogar no exterior — mas é a primeira que ele consegue, de fato, viajar.

Nascido e criado na periferia de Sorocaba, interior de São Paulo, conheceu o FPS ainda adolescente através das lan houses, aos 12 anos. Os campeonatos de Counter-Strike 1.6 vieram poucos anos depois, e um confronto em seu primeiro torneio em LAN, em 2011, marcou sua carreira.

“Peguei o FalleN de começo”, relembra, aos risos. “Pra ficar ligeiro. Peguei o time do Fallenzão, tomei uma surra. Mas foi uma experiência incrível, ele me elogiou, falou que eu era muito bom. Que dia. Fiquei muito feliz.” No ano seguinte, tomou outra “surra” — dessa vez para FalleN, Fer, Fnx, HEN1 e LUCAS1 — e foi elogiado pelo Verdadeiro mais uma vez. “Tomei como inspiração”, afirma.

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Fluyr, Hen1, Lucas 1, Fer, Fnx, Fallen, Willzao, btt e Gaabxx (Arquivo pessoal)

Apaixonado pelos jogos de tiro, Gaabxx buscou outras opções quando o CS 1.6 deixou de ser jogado, mas voltou ao cenário competitivo com o CS:GO. A meta era vencer e viver do jogo. Formou um time ao lado de figuras como tatazin e dzt, e conseguiu destaque cedo, conquistando uma vaga no Americas Minor de 2015, torneio classificatório ao Major, mundial da modalidade.

“Fomos fazer o visto e deu que a gente não tinha vínculo o suficiente com o Brasil para viajar. A gente mostrou o nosso contrato, a carta do campeonato, mostramos muitas coisas, até o dinheiro que a gente tinha em conta”, relata. “Deixou a gente pra baixo. ‘E aí, vai continuar, como vai ser? Não, bora continuar’”.

Com 18 anos, conciliava os treinos com o Ensino Médio e o trabalho. “Era uma empresa boa, em que eu poderia crescer. Mas chegou um dia em que eu falei ‘não, eu quero viver de jogo’”, conta. Deixou de morar com a mãe, pediu ajuda à avó e terminou morando na Praia Grande com o pai, buscando um teto para dedicar-se ao FPS.

A primeira experiência profissional foi quando, em 2016, a organização Big Gods contratou seu time. “Eles ofereceram 300 reais [de salário] e a gaming house para a gente. Falei ‘bora, bora que bora’”, conta. Em Abril, o time dominou o cenário nacional e venceu mais uma classificatória para o Minor.

“A gente ganhou, felicidade imensa dentro da GH. Se não deu certo a primeira, essa vez vai dar. Impossível, já passou um ano, os caras já sabem o que é jogo. Meu pensamento era esse. Mas foi a mesma história. Mesma história”, revive, em tom de frustração.

A motivação foi minada, mas o FPS não saía de sua vida. Voltou a trabalhar e ficou meses longe do competitivo, mas eventualmente recebeu outra proposta. Ganhando o mesmo que no time anterior, deixaria o emprego outra vez pelo jogo, dessa vez representando a RED Canids.

Em pouco tempo, Gaabxx conquistou vaga para mais um campeonato internacional, na Indonésia — e mais uma vez, problemas burocráticos o impediram de representar o Brasil. “Eu fiquei maluco, maluco, tá ligado. Tava tudo certo. Falei pra todo mundo que ia, chegou no dia, não fui. Você fica como o mentiroso, o bobo da corte”, desabafa.

“Em 2018, parei de jogar. Não é pra mim. Não é pra mim, esquece isso, já foi. Vendi meu computador, vendi tudo, comprei um carro com o dinheiro. Aí arranjei um trabalho, comecei a trabalhar…”
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Longe do palco competitivo, Gaabxx trabalhou em uma assistência técnica em Sorocaba otimizando computadores — habilidade que adquiriu por sua experiência com jogos. Das 7 da manhã às 6 da tarde, ele trocava peças e formatava máquinas, e, na hora de testar, o FPS voltava a seu pensamento.

Dos computadores dos clientes, acessava sites de notícia e resultados de campeonatos, abria transmissões, entrava em contato com o cenário. “Caramba, eu era jogador profissional e agora eu tô trabalhando aqui. Eu via os caras jogando e pensava: ‘era pra eu estar ali’. Meu sonho é aquilo, o que eu tô fazendo aqui? O que eu tô fazendo aqui?”, subiu o tom, em ênfase, ao lembrar.

Os tombos na carreira competitiva e a impossibilidade de receber um salário que o sustentasse com o jogo o afastavam do palco, mas o pensamento era firme no FPS. Queria viver aquilo desde adolescente, desde seu primeiro torneio em LAN — mas como, se precisava pagar suas contas e o que recebia como jogador não era suficiente?

O colega Cleber, que trabalhava ao seu lado, incentivou. “Vai atrás do seu sonho. Eu tenho 40 anos, já vivi muito, não tenho mais tempo. Você é novo e tem chance”, Gabriel narra. “Fui no banco, peguei um cartão de crédito, 7 mil reais, parcelei um computador trabalhando”, diz. Persistiu, e outra proposta chegou: morar em Brasília e jogar em um time academy. Deixou o emprego e aceitou no ato: “Qualquer coisa pra eu viver esse sonho de novo”.

“Meu primeiro salário, em 2015, era 300 reais. Chuta, Eve, qual era agora”, joga, e eu retruco, rindo: “300 reais”.

Gaabxx asserte. “Eu menti pra a minha mãe, pro meu pai, pra a minha namorada. Falei que ia ganhar mil reais”, conta. Mas o pulo de cabeça também não deu certo — os companheiros de time eram novatos, e a decepção veio cedo. Sentia que era um passo atrás, e deixou o time. “Pra line academy, era a line perfeita, mas eu não me via nisso”, confessa.

“Fui eu de novo pedir pra minha mãe ou pro meu pai me buscar no aeroporto. Pela terceira ou quarta vez, sei lá”, relembra, revivendo a frustração.

Era 2020, e uma possibilidade interessava Gaabxx: a chegada do VALORANT. O ex-companheiro da época da Big Gods, Biel The Magician, convidou-o para formar time no novo FPS — sem salário, brincando em torneios no início do jogo.

O destaque começou na Gamers Club Ultimate II, em setembro. Sua Jett passava a chamar atenção, mesmo sem grandes resultados da No2B, formada por Gaabxx, Biel, Gabriel Infiel, Chase e Mathr. Eventualmente, Mathr sairia para dar lugar a Matheus Fragozo, desenhando o que se tornaria o Treinão do Fra.

“A gente fez aquele jogo histórico contra a B4, que terminou em 30 a 28, que teve mais Overtime no mundo”, lembra, rindo. Naquela disputa, Gaabxx percebeu uma característica fundamental do teammate Fra: a ambição e a calma em jogos difíceis. “Um dos motivos da gente dar comeback é isso: Nada tá perdido. Tá 1x4, dá pra ganhar. Tá 8 a 0, dá pra ganhar.”

Com o fim da qualificatória para o First Strike, outros times do cenário se desfizeram. Gaabxx e Fra uniram-se a Denaro, que deixava a Team Vikings, a prozin, ex-RED Canids, e a Foox, recém-saído da Black Dragons.

Ao fim de 2020, Gabriel via futuro no VALORANT, mas ainda tinha receio de repetir os tropeços anteriores. Uma virada de chave aconteceu quando ele decidiu olhar para si e para seus comportamentos com aliados e adversários.

“Eu era um cara muito marrento, Eve”, confessa, com um sorriso. “Hoje, você conversa comigo e fala ‘pô, você é muito legal’, mas eu era muito brigão. Jogava ranked e xingava, se ouvia não ficava quieto, retrucava, farpava todo mundo.”

“A minha mãe, ela é taróloga. Lê cartas”, explica. “Confio muito nela. Pedi pra ela ler pra mim, e ela leu que a minha carreira não funcionava por causa da minha comunicação. A partir daí, meu pensamento mudou. Decidi não brigar mais com ninguém, respeitar todo mundo”, conta Gaabxx.

“Entrei no Twitter e pedi desculpa pra todo mundo que eu briguei. Já briguei com o Pleets, da Havan, e fui pedir desculpa. Briguei com o gtn [da Vikings] e fui pedir desculpa… Engoli meu orgulho e fui. Já tentei de tudo e deu errado, vou tentar isso. Acho que isso foi um dos motivos, porque olha onde eu tô”, pondera.

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A “Gangue do Fra” se classificou para o primeiro VALORANT Challengers Brasil como Squad5, vencendo na estreia, mas sendo eliminada em duas Md3.

Divergências com o controlador Foox fizeram com que o time mudasse. Prozin indicou Light, nome que já conhecia de outros jogos, e o time clicou. O primeiro título foi o da Aorus League, tirando a invencibilidade da Gamelanders em finais em um sonoro 2 a 0.

“Depois que vocês venceram a Gamelanders, você passou a sentir que podia chegar a algum lugar com essa line?”, questiono.

“Antes mesmo, Eve”, Gaabxx crava. O cenário se atentava à força do grupo, que aplicava placares expressivos nos melhores times do cenário nos treinos. “Só que fora dos treinos, ninguém via o que a gente fazia. A gente tava top 11, 12, mas na nossa cabeça já era top 3”, confidencia o duelista.

A Squad5 conquistou vaga no circuito oficial através da terceira etapa do Challengers, e foi contratada pela organização portuguesa Sharks dias antes do Masters Regional. No campeonato, caíram nas Quartas, mas foram o único time a tirar um mapa da Team Vikings no campeonato — a Haven, por 13 a 4.

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(Foto: Jéssica Liar - @jessicaliar)

Gaabxx define o companheirismo como grande trunfo da Sharks. “No começo do time, o Fra recebeu duas propostas. A Slick ia pagar bem, e a gente não recebeu nada. Ele falava ‘não, eu confio em vocês’. Nosso time são os cinco, ninguém vai tirar ninguém, nossa união é muito forte”, garante.

Ele cita situações em que o time se ajudou fora de jogo: problemas com família, saúde, questões financeiras. “Até me emprestar dinheiro o Fra emprestou quando eu precisei. Ele nem me conhecia pessoalmente. Aí depois, tô jogando bem, tive umas propostas de time. Eu não vou sair, não adianta me chamar. Vou ficar na Sharks e acabou. Do mesmo jeito que os caras confiaram em mim, no meu potencial, eu vou confiar neles e vou ficar também, vou honrar a palavra”, crava o duelista.

Para Gaabxx, sua característica mais importante dentro do jogo é a agressividade — qualidade que casa com e define o estilo da Sharks, rápido e explosivo, seja com as entradas impulsivas com Prozin ou com tiros de Operator que definem rounds. Fora de jogo, ele aponta a inteligência, que utiliza para entender o ambiente e identificar rapidamente o que pode ser melhorado.

E não é uma inteligência que adquiriu estudando. Ela vem da rua — de Paineiras, bairro que cresceu. “Se você pegar alguém daqui de Sorocaba e falar que o cara mora no Paineiras, ele vai falar ‘ih…’”, sugere, rindo. “Baile funk toda hora, polícia, correria, cada esquina tem droga. Eu meio que vivia na rua, jogando bola, soltando pipa. Você aprende muito”, divide.

“Já tive chance de fazer coisa errada e de fazer coisa certa. Quando você vive isso, e com 18 anos sai de casa pra jogar e viver outra coisa, você vai aprendendo mais ainda. Aprende a lidar com tudo”, afirma.

Gabriel não considera que sua trajetória antes do VALORANT “não deu certo”. “Eu ganhei bastante campeonato, joguei contra os melhores. A única coisa que não deu foi jogar o Mundial”, relembra.

Mas o sonho será realizado no Masters. No momento em que escrevo este texto, Gaabxx já está na Islândia, treinando contra os melhores do mundo, preparando-se para representar o Brasil depois de quatro tentativas.

Ele me conta o que sentiu quando venceu a FURIA, e o que vivenciou na melhor de três que decidia a segunda vaga para a Islândia. Quase não foi, quase bateu na trave de novo. A Sharks treinou por meses para aquele momento e foi mérito, foi culpa da resiliência do Treinão — mas, religioso, Gaabxx crê que era a hora certa.

O duelista reconhece o mérito da Sharks de virar cenários “impossíveis”, e sua fé o ajuda a acreditar que não existe cenário que não possa ser virado. “Por isso eu fico tranquilo. Tá 10 a 0? Vamo, que dá pra ganhar. Por isso que às vezes nosso time volta. Eu não desacredito nunca”, garante.

“Sempre levo Deus. Tô até com a minha Biblinha aqui. Claro que vou levar pra Islândia, não tem como, tem que me proteger”, sorri.

E a ansiedade para representar o Brasil é intensa, mas não o abala. O foco é no título, em representar bem. “Vou dar meu máximo. Se eu não conseguir, dou meu máximo no próximo, e no próximo. Minha vida sempre foi assim. Tropeçando, crescendo e dando meu máximo sempre”, finaliza Gaabxx.


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